Praia

Não sei como estou sobrevivendo a esses dias.
Continuo com a mesma roupa daquela noite, não sei a quantos dias atrás, minhas mãos continuam tremendo, minha mente continua agitada, repetindo a mesma cena cada segundo, e por fora... Estou sem expressão. Mecânica. Fazendo a mesma coisa o tempo inteiro: passando meu tempo na enfermaria, cuidando de pessoas. Acalmando-as e tentando curá-las. Foi realmente tranquilizante saber que ninguém morreu, mesmo que o Diretor Ivashkov e o Comandante Markwell tenham ficado bastante surpresos, mas o trabalho continuava. Mesmo os vivos tinham muitos ferimentos, e podiam morrer. E morriam. Perdemos uns dez campistas ou mais, devido a alguns cortes sem jeito. Mas os outros cortes também me preocupavam: os psicológicos. Muitos dos que estiveram lá no salão aquela noite estão perturbados, desorientados. Não querem sair de seus quartos e não os culpo por isso. As aulas? Paradas. Os professores não querem entrar nas salas sem alunos, ou estão se recuperando da luta, nós cuidamos de alguns deles na enfermaria. A enfermeira e eu. A dupla incansável. Não sei quando foi a última vez que dormi.
Como a sala da enfermaria não é grande, nem de longe, o suficiente para todas as vítimas do ataque, mantemos ali só os casos mais graves. Mesmo assim, temos uma superlotação, mais ou menos umas trinta pessoas. Não é por falta de oferecimento de ajuda que lidamos com tudo sozinhas, a enfermeira e eu. Não podemos deixar qualquer pessoa junto às vítimas, ou cuidando delas, tocando em cortes... Pode dar algum problema no tratamento. Eu não sabia nada sobre enfermagem, mas aprendi tudo o que precisava nesses últimos dias. Ou horas.
Hoje é o meu primeiro dia de folga. Ou quase isso. Eu deveria ir dormir, descansar, mas sabia que não conseguiria fechar os olhos se deitasse na cama. Não queria deixar todos os pacientes lá, parar por um momento de tentar salvar a vida deles. Estou exausta, meus pés me trouxeram para a praia e agora encaro o mar. Tão imenso, tão vasto e imponente. E ele se mistura com as imagens em minha cabeça: os feridos, o membro da Irmandade sem oxigênio, Dan e eu conversando com aquela menina... Só que eu me sentia tão bem quando estava na enfermaria, por isso não saía de lá. Ficava feliz em ajudar as pessoas, elas se sentiam bem em minha presença, e uma ideia se formava em minha mente... Eu poderia fazer isso para o resto da vida.
Neste momento, porém, eu não tenho forças para sair daqui. Preciso voltar para lá, quero isso, mas todas as emoções dos últimos dias chegam com tudo. Não consigo me mexer. As lágrimas começam a escorrer e continuo encarando o mar, sentada na areia, suada, tremendo. Tudo tinha acabado, mas as lembranças ficariam para sempre. E as lembranças machucam, corroem. Elas matam por dentro.

Saio de meus devaneios quando escuto uma voz feminina meio familiar. Dianna Blackwell, irmã do Blackwell, está ali na minha frente. Seco as lágrimas o mais rápido possível, mas percebo que ela não as notou. Parece desorientada, confusa, e não me reconhece a princípio. Mas depois acho que sim, não consigo identificar muito bem. Fala que me conhece do Acampamento e então duas possibilidades se formam em minha cabeça: ou ela está fazendo de propósito, para zoar comigo, ou realmente não está nada bem.
Lembro que a primeira opção seria bem provável, afinal, apesar de ser a mais nova, ela às vezes anda com Luce e Lyanna, as duas it-girl do ASN, que acham que podem tudo, sem querer julgar ninguém. Só que estamos passando por tanta coisa ultimamente que nem os antigos "reis e rainhas" andam manifestando-se, sem contar que cuidei de Mortymer e Steigleder na enfermaria, até recuperarem-se. E, pensando bem, a muito tempo que não vejo Dianna. Ela andou sumida. Decido, por eliminação, ficar com a segunda hipótese: essa garota não está bem. E então ela nota meu estado.
Eu estou bem, obrigada... É só... Tudo o que passamos, entende? Estou emocionalmente esgotada.
Respiro fundo, algo que sempre ajuda, afinal, ar está envolvido no processo. Faço um sinal para que ela sente-se ao meu lado e, por um momento, apenas olhamos o mar. Nunca o tinha visto dessa forma, como algo a ser apreciado, mas é exatamente assim que estou observando-o agora. Amo o ar mais do que qualquer coisa, mas pela primeira vez na vida penso em como seria se eu fosse manipuladora da água.
Alli. A quanto tempo não falo com minha melhor amiga? Porque ela está tão distante? Em compensação Dan está mais perto do que nunca, visitando a janela da enfermaria de vez em quando, tirando-me dos movimentos automáticos, ou só me observando trabalhar. Até parece que estamos juntos de novo. Acho que é só esse clima estranho...
Você lutou aquela noite? Não lembro de estar entre os feridos...
Foram tantas pessoas naquele dia, tantos rostos, não lembro de ninguém em particular. Continuamos olhando o mar e o vai-e-vem das ondas, seria ótimo se ele levasse certas coisas e não trouxesse-as nunca mais.

Dianna diz que não lutou, mas continuo com aquela suspeita de que algo está errado. Ela nunca foi assim. Pude perceber, com o canto dos olhos, que estava pensando em algo, fazendo força para pensar. Só se ela bateu a cabeça e não se lembra de nada, mesmo. Porque a Blackwell de antigamente, nunca pararia para conversar com alguém como eu, nunca pareceria tão confusa. A vampira pergunta sobre os feridos, se houveram muitos, pois não teve coragem de ir conferir. Bem, agradeço a ela mentalmente por isso: os curiosos deixam o nosso trabalho, lá na enfermaria, muito mais difícil. Feridos precisam de espaço e calma, e eles parecem não entender isso. Suspiro.
Muitos feridos, poucos mortos. Mesmo assim, muito trabalho. É tão...
Triste? Difícil? Esgotante? Não sei com qual palavra completar a frase e deixo-a morrer. Na verdade, eu estava gostando de cada minuto. Quando estou na enfermaria, não vejo a hora passar. Gosto de ser necessária para alguém, de ajudar. Claro, não quero que ninguém mais se machuque, mas é tão bom cuidar dessas pessoas. Me faz tão bem. E só reforça minha ideia... Será que eu deveria contar para quem primeiro? Dan? Alli? O Comandante Markwell? O Diretor Ivashkov?
Quando pergunta sobre o irmão, Dianna desvia os olhos do mar e me encara. Faço o mesmo e vejo em sua expressão a importância dessa resposta:
Não, ele não está na enfermaria. A última vez que o vi foi na TDN.
O alívio por parte dela é bem visível. Continuo a encará-la e resolvo perguntar, porque esses não são dias normais e tudo está muito estranho:
Dianna, você está legal? Pelo que eu soube, ninguém a via a muito tempo... E você aparece justo agora, no meio de toda essa confusão? O que aconteceu?

Dianna me confessa que não lembra o que aconteceu e percebo ser um caso de perda de memória. Onde será que essa garota passou esse últimos dias? Fico momentaneamente preocupada e começo a falar algo, talvez dizer a ela sobre como deveria procurar um médico especializado em seres sobrenaturais. Meus pensamentos são os primeiros a me interromper: cada hora que passa parece ficar mais claro o que eu quero para a minha vida. E não tem nada a ver com ser guardiã para todo o sempre. Tenho que tomar uma decisão de uma vez por todas.
Quando vou finalmente dizer alguma coisa, vejo um menininho vindo correndo pela praia em nossa direção. Reconheço-o como nosso ''pequeno ajudante'' da enfermaria, que está sempre por perto e faz algumas coisas para ajudar, acho que é um manipulador... Ele chega até nós e me diz que a enfermeira precisa de minha ajuda. Claro, olho para o céu e percebo que a noite já chegou, muito rápido. É hora da ronda dela, ou seja, ela vai passando pelos dormitórios, atendendo alguns feridos com menos gravidade e vendo mais problemas. Fico feliz de ficar quietinha na enfermaria e deixar esse trabalho para ela. É desgastante o suficiente.
Obrigada, diga a ela que já vou.
Ele sai correndo de novo, espalhando areia para todos os lados. Levanto e olho para Dianna uma última vez:
Preciso ir. Olha, eu acho que você deve buscar ajuda, porque isso que aconteceu a você é muito grave. Qualquer coisa, se precisar de alguém para desabafar, estarei na enfermaria. Bom ver você de novo.
Dou um abraço nela. Acho que o que mais preciso nesses últimos dias é de abraços. Muitos. Meu Deus, como estou carente. Preciso falar com Dan o mais rápido possível, mas, primeiro, eles. Meus pacientes. O trabalho me chama.
Mesmo cansada, coloco um sorriso no rosto e começo a caminhada até a enfermaria. O caminho é longo, mas vou chegar lá.